sexta-feira, 18 de abril de 2025

Vou me embora para Tatipirun

 Se existe uma terra onde todos são livres, sem julgamentos, sem guerra e sem amo é Tatipirun. Eu te garanto! Essa terra foi inventada por Raimundo, o herói dos oprimidos em A terra dos meninos pelados.

A terra dos meninos pelados é um livro escrito por Graciliano Ramos logo após ser libertado da prisão em Ilha Grande no ano de 1937. Nacionalmente conhecido por Vidas Secas (1938), o amargurado clássico da cadelinha Baleia, o livro em questão contrasta-se por ser uma obra infantojuvenil.

Ué! Mas feito fábula pra adultos, é tão necessário quanto Monteiro Lobato, Andersen, Orwell e outras recomendações da farmácia universal de literatura. Graciliano Ramos - pegue esta indicação.

Aqui temos a história de Raimundo, um menino careca com olhos de duas cores, um preto e outro azul, que vive em Cambacará, uma terra de meninos "normais". Por lá Raimundo sente-se perseguido e humilhado por sua aparência diferente dos demais e o seu jeito de viajar no seu próprio mundo.

Não tendo com quem entender-se, Raimundo Pelado falava só, e os outros pensavam que ele estava malucando.

Estava nada! Conversava sozinho e desenhava na calçada coisas maravilhosas do país Tatipirun, onde não há cabelos e as pessoas têm um preto e outro azul. (p. 8) 

Pra fugir dessa realidade, Raimundo cria sua cidade utópica: Tatipirun. E lá em Tatipirun todos são carecas, inclusive as meninas, e as roupas são tecidas por uma aranha. 

A cidade, não muito longe de Cambacará, é uma pura viagem espetacular só para o imaginário fértil dos sonhadores. Só para os raros!

Os discos giravam, soltos no ar, as cigarras não descansavam - e havia em toda parte músicas estranhas, como nunca ninguém ouviu. Aranhas vermelhas balançavam-se em teias que se estendiam entre os galhos, teias brancas, azuis, amarelas, verdes, roxas, cor das nuvens do céu e cor do fundo do mar. (p. 16)

Enquanto Raimundo desbrava a Tatipirun de seus delírios, ele descobre um mundo perfeito - não pelo fato de todos serem muito parecidos com ele -, mas porque existem outros mundos. Ao nos chocarmos com esses desconhecidos, conseguimos perceber a normalidade do diferente - e por, fim, reconhecermos nosso lugar no mundo/nossos lugares nos mundos.

- Mas andando à toa, sem destino, como é que vocês entram em casa?

- Entrar em coisa nenhuma! A gente se deita no chão.

- Macio, realmente. E as casas?

- Não entendo.

- Pois vou chamar o Pirenco. Venha cá, Pirenco. Onde estão as casas?

Talima encolheu os ombros:

- Ele veio de Cambacará cheio de ideias extravagantes.

- Perguntas insuportáveis, acrescentou Sira.

Raimundo observou os quatro cantos, não viu nenhuma construção.

- Está bem, não teimamos. Vocês dormem no mato, como bichos.

- Descansamos à sombra dessas rodas que giram, disse Fringo.

- Debaixo dos discos de vitrolas. Sim senhor, bonitas casas. E quando chove?

- Quando chove?

- Sim. Quando  vem água lá de cima, vocês não se ensopam?

- Não acontece isso.

Raimundo abriu a boca e deu uma pancada na testa:

- Que lugar! Não faz calor nem frio, não há noite, não chove, os paus conversam. Isto é um fim do mundo. (p. 43)

Essa leitura foi ilustrada pelo brasiliense Roger Mello. Em A terra dos meninos pelados, as ilustrações lembram os traços da técnica de xilogravura. Mais que um ilustrador, Roger Mello é um artista de cores e traços que transmitem da forma mais viva nossa cultura.

Princesa Caralâmpia

Que sigamos assim, fazendo saudáveis passeios pelas Cambacarás e Tatipiruns.

RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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