quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A fúria dos meninos (O senhor das moscas)

Ilustração de Nina Schindlinger

Lord of the flies ou O Senhor das Moscas é uma novela distópica e selvagem, escrita pelo britânico William Golding (1911-1993) e publicada em 1954, às sombras das memórias da Segunda Guerra Mundial, a mesma que o autor serviu em 1941.

O romance apresenta-se como uma distopia que pode soar infantojuvenil, pela faixa etária dos personagens - crianças -, mas no decorrer da trama, é revelada a brutalidade presente em um romance dito adulto. O cenário político da narrativa é de um Estado em guerra nuclear, e os meninos, por sorte ou azar, após a queda do avião que os levava, se salvaram de uma bomba atômica.
Inicialmente, temos uma organização democrática, em que regras são criadas em prol da harmonia e sobrevivência do grupo. Os meninos ensaiam uma sociedade sem adultos, criando regras e responsabilidades, sendo crianças cuidando de crianças, sabendo que sem lei, não há ordem.

— Não há adultos?
— Não.
Merridew sentou-se num tronco e olhou em volta.
— Então teremos de cuidar de nós mesmos. 

 

Concha, fogo e carne


Esses são os três elementos que podem marcar a cronologia comportamental da trama: a concha, o fogo e a carne. A concha representa a organização do grupo, o poder de fala que todos têm, que de maneira organizada e democrática, todos têm o direito e o poder de comunicar, informar e reclamar. O fogo representa o conforto e a segurança, de aquecer-se, cozinhar a carne, fazer sinal de fumaça. E por último, a carne, que garante o "pão" e o sustento para continuarem vivendo isolados numa ilha.

Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue!
A tribo estava dançando. Em alguma parte do outro lado dessa muralha de pedra, havia um círculo escuro, uma fogueira brilhante e carne. Estavam saboreando a comida e o conforto da segurança.

 

Meninos com fome ou o chamado selvagem


Mas no decorrer da trama, à medida que a anarquia reina entre o grupo, a concha já não fará mais sentido, todos falam, mas uns falam mais que outros. Já o fogo torna-se motivo de discussão, em que determinado momento os meninos ateiam fogo na ilha. Já a carne, torna-se símbolo de brutalidade, que renasce o homem selvagem e inicia a luta dos mais fortes. A carne também é o ápice da selvageria, clímax do livro. 

Os pequenos começaram a correr, gritando. Jack pulou na areia.
— A dança! Vamos! Dancem!
Correu, tropeçando pela areia funda até o espaço de pedra além da fogueira. Entre os raios, o ar estava escuro e terrível; os meninos seguiram-no aos gritos. Roger tornou-se o porco, guinchando e investindo contra Jack, que se desviou. Os caçadores pegaram as lanças, os cozinheiros seguraram seus espetos e os outros, pedaços de lenha. Começou o canto e um movimento de cerco. Enquanto Roger imitava o terror do porco, os pequenos corriam e saltavam fora do círculo.

Alegoricamente, o fogo denuncia os medos mas também as esperanças da humanidade sobre a era nuclear: a energia atômica criaria energia limpa e ilimitada ou extinguiria toda a vida no planeta? Os meninos atearam fogo em sua ilha paradisíaca, enquanto os mais velhos e superiores quase destruíram o planeta.¹

Considerando o contexto de produção e publicação,  O Senhor das Moscas é fruto de uma inspiração e experiência bélica, que no cerne da guerra há a luta do homem contra o homem, vítima da "terrível doença do ser humano"² - este o ponto principal da narrativa. Em entrevista, Golding disse que seu romance é sobre a importância do Estado de Direito e sobre a complexidade dos seres humanos. Nesta obra, vemos como uma sociedade desregrada pode vir a ser deturpada pelos instintos do homem, fazendo-nos questionar o quão livre (e felizes) seríamos se vivêssemos em um estado sem lei nem ordem. Mas também, o quanto estamos refém de um estado que investe na guerra do homem contra o homem.

Colocando meninos como homens, Golding não faz nada mais que a guerra fez e faz, homens contra homens, seus arranjos de sobrevivência e poder, ultrapassando o limite do civilizatório.


GOLDING, William. O senhor das moscas. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2011.

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