Em O Chamado Selvagem (The Call of the Wild, título original), Jack London conta a história de um cachorro criado junto de humanos em uma fazenda na Califórnia e que foi roubado e vendido para servir aos homens na neve. Longe de casa, Buck, o cão roubado, vive momentos de perigo e fúria, essas experiências ajudarão o cão em sua nova vida selvagem.
Publicado em 1903, London utilizou como cenário a região canadense, fronteiriça com o Alasca (EUA), explorada durante uma das maiores buscas por ouro no final do século XIX (entre 1897 a 1898).
Durante a Gold Rush (Corrida do Ouro), a região canadense de Klondike, em Yukon, recebeu muitos exploradores, muitos destes utilizavam trenós carregados de utensílios e pertences, tanto para o acampamento como para a busca de ouro. Nas condições em que estes homens estavam dispostos a enfrentar, os cachorros eram as melhores opções para auxiliar nesta jornada.
Os sled dogs, que são os cães que puxam estes trenós, geralmente apresentam bastante pelos, para suportar o frio, e são fortes, possuindo maior resistência tanto para puxar o trenó como para aguentar as longas caminhadas. Enquanto sled dog caracteriza os cães puxadores de trenó, a palavra dogsled designa o transporte.
Dogsled no Alasca (EUA), mais fotos aqui. |
Filho de uma Collie com um São Bernardo, Buck cresceu robusto, ficou grande e peludo, com as características ideais para um sled dog. O leitor já pode imaginar o que Buck, o cão que se aquecia próximo à lareira da casa do Juiz Miller, estava prestes a enfrentar no inverno rigoroso. Sabendo das notícias sobre a Corrida do Ouro, um funcionário da casa aproveitou a situação e roubou Buck, levou o cão para uma estação e depois o vendeu para um desconhecido. A partir daí, Buck se sente angustiado, pois tudo é novo e ao seu redor não havia mais uma família que lhe agradava com passeios pelo campo e carinho como recompensa.
Nas terras do sul, Buck estava acostumado com a lei do amor e do companheirismo, mas no norte, para onde Buck foi levado, essa lei não existia. Buck estava muito longe de casa, e a partir daí ele só conheceria homens brutos, como o homem de suéter vermelho, estes homens não se importavam com as leis comuns aplicadas na sociedade, apenas a “Law of Club and Fang”, a Lei do Porrete e da Dentada. Buck aprendeu a lição, e a aplicaria mais tarde em momentos de perigo, era ascensão dos instintos selvagens, onde o mais forte sobreviveria.
Um dos novos donos de Buck, François, era severo, exigia obediência à matilha. Buck passou a conviver com outros cachorros da matilha que puxavam o trenó, alguns como ele, sem experiência alguma, outros mais experientes e até encrenqueiros, como o Spitz.
Buck e Spitz haviam travado uma guerra instintiva, que no fim resultou na derrota de Spitz, a partir desse momento, a besta primitiva e dominadora havia renascido em Buck, apesar de ainda não responder ao chamado da selva que sempre assombrava durante as noites frias. A Lei do Porrete e da Dentada, aprendida com o homem do suéter vermelho e com os outros homens que necessitavam desta conduta para sobreviver, permaneceu nas lembranças do cão. O temperamento selvagem reinava em Buck: ele estudava sua presa, tudo pelo desejo de matá-la. Era matar ou morrer, e ele matava para sobreviver.
“O desejo pelo sangue se tornou mais forte do que nunca.Ele era um assassino, uma coisa que caçava, vivendo das coisas que viveram, sem ajuda, por si só, em virtude de sua própria força e bravura, sobrevivendo triunfalmente em um ambiente hostil, onde só os fortes sobrevivem.” (LONDON, 1903, p. 77)
No restante do livro, Jack London surge com mais alguns personagens, dentre estes, talvez um dos mais marcantes, demonstrando a amizade entre o homem e o cão, surge John Thornton, que resgata Buck depois de sofrer com seus antigos donos, desta vez os irmãos Hal e Charles e sua esposa, Mercedes.
Depois de ser bem tratado por Thornton, Buck sabia que nunca mais voltaria ser um sled dog, muito menos um cão domesticado, ele estava livre. Buck então passou a explorar o ambiente ao seu redor com mais confiança, e a canção que ele ouvia durante as noites, ele finalmente a seguiu, descobriu da onde vinha aquele som que ecoava, eram os uivos de seus antepassados, eram os lobos.
As versões de Buck (da esquerda para direita): 1935, 1975, 1997 e 2009. |
Into Klondike
A experiência do autor em Klondike foi base para este romance. Em 1897, aos 21 anos, Jack London desistiu da faculdade e foi para Klondike, ele passou a escrever relatos desta aventura para a revista The Owl em sua cabana. Lá, London teve as experiências de seus personagens, viu a força dos cães da neve, a brutalidade e o cansaço dos mineiros. Na biografia The Book of Jack London (1921), escrito pela esposa do autor, Charmian London, há vários relatos dessa experiência (no capítulo Into Klondike), além de outras antes e depois da Corrida do Ouro.
A cabana de Jack London. |
No site The Big Read há um trecho de uma entrevista feita por Adam Kampe, do National Endowment for the Arts (Fundação Nacional das Artes), com Sara S. Hodson, curadora da Biblioteca Huntington, em San Marino, Califórnia. Sara dedicou-se a estudar a vida e as obras de Jack London, a primeira leitura foi ainda no colégio, com O Chamado Selvagem.
Na entrevista, realizada em 2007, Adam Kample pergunta à Sara o que teria motivado Jack London a ir para Klondike, Sara diz que ele precisava de dinheiro, entretanto, isso não foi o que mais impulsionou o autor. As histórias contadas pelos mineiros valiam muito mais que o ouro, e o valor dessas histórias foi o que mais atraiu London, segundo Hodson. Para ela, ele reconheceu que aquele lugar era onde estava o futuro de sua escrita - remetendo-se ao estilo das obras do autor.
Jack London permaneceu em Klondike por um ano, Sara diz que este tempo foi bastante significativo para a influenciar o autor, pois London viu o jeito que os cães se comportavam e como eram tratados e maltratados.
"Ele viu a vida mais dura, em sua forma mais elementar, onde cometer um pequeno erro pode significar a perda de sua vida." (NEA, 2007)Quanto aos personagens, Kample pergunta a Hodson se existem paralelos entre London e Buck, ela responde:
"London era muito parecido com Buck durante as lutas. Ele lutou por aquilo que ele sabia que era seu direito, e nunca se contentou com pouco. Buck começou num ambiente protegido e de repente é jogado brutalmente em mundo onde ele tem que lutar para sobreviver a cada dia. Se ele não aprendesse as leis, ele não iria sobreviver. [..] Jack London era assim quando chegou em Klondike. Ele não sabia sobre a vida. Ele aprendeu que homens lhe mostrariam o que ele precisava para sobreviver, o jeito certo de se comportar em relação as outras pessoas e para com os animais. John Thornton é muito parecido com Jack London. Ele é um homem de compaixão, que pode lidar de forma justa com os humanos e com os animais. London tinha seu jeito próprio de se aproximar das pessoas, sempre foi justo, generoso e carinhoso." (NEA, 2007)Por último, o entrevistador pergunta à Sara por que O Chamado Selvagem é considerado um clássico mundial, ela justifica dizendo que o livro é atemporal, útil e agradável para todos e em qualquer momento, acrescentando ainda que:
"É um livro sobre a sobrevivência, e a sobrevivência é um problema para todos, não importa se estamos sobrevivendo em um dia no escritório, em um árduo trabalho manual, em um relacionamento ruim ou em Klondike, sem fogo ou comida." (NEA, 2007)Hodson também diz que uma história de sobrevivência nos faz refletir, permitindo ao leitor se imaginar naquela situação.
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