Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Comportamento Geral - Gonzaguinha
A miséria sempre cai à tona como pauta da ficção e da realidade. Down and Out in Paris and London (1932) - Na pior em Paris e Londres - é um relato do submundo londrino e parisiense do escritor inglês George Orwell.
Crítico voraz do capitalismo, Orwell tem em mãos uma arma: arte da palavra. Da mesma forma que descreve sua vida nas ruas e albergues de Londres ou como lavador de pratos em Paris, ele denuncia a fome e a pobreza consequentes do capitalismo. Viver em breus, contar francos, vender pertences em troca de pão e chá. Este relato não foge das ficções do autor, impacta como uma distopia e apresenta recortes da pobreza e da alienação social dos escravos modernos.
Após ter romances rejeitados por editoras, Orwell deixou de lado o ofício da escrita e trabalhou em hotéis e restaurantes em Paris como plongeur ou, grosseiramente, lavador de pratos. No capítulo 22, disponível para leitura abaixo, Orwell denuncia a exploração envolta aos subempregos, consequência da exploração do homem pelo homem.
Quero dar minha opinião sobre a vida de um plongeur de Paris, se é que ela vale alguma coisa. Se pensarmos bem, é estranho que milhares de pessoas em uma grande cidade moderna passem suas horas de vigília lavando pratos em antros quentes e subterrâneos. A questão que levanto é por que essa vida continua, para que ela serve e quem quer que ela continue, e por quê. Não estou assumindo uma atitude meramente rebelde, fainéant. Estou tentando examinar o significado social da vida de um plongeur.
Creio que se deve começar dizendo que o plongeur é um dos escravos do mundo moderno. Não que haja necessidade de ter pena dele, pois está em melhor situação do que muitos trabalhadores braçais, mas ainda assim não é mais livre do que se fosse comprado e vendido. Seu trabalho é servil e sem arte; pagam-lhe apenas o suficiente para mantê-lo vivo; só tem férias quando é demitido. Não tem condições de se casar e, se casar, sua mulher vai precisar trabalhar também. Exceto por um acaso feliz, não tem como escapar dessa vida, a não ser indo para a prisão. Neste momento, há homens com diploma universitário esfregando pratos em Paris de dez a quinze horas por dia. Não se pode dizer que é mera preguiça deles, pois um homem preguiçoso não pode ser um plongeur; eles simplesmente caíram na armadilha de uma rotina que torna impossível pensar. Se os plongeurs pensassem, teriam criado um sindicato há muito tempo e feito greve por um tratamento melhor. Mas eles não pensam, porque não têm tempo para isso; a vida que levam fez deles escravos.
A questão é: por que essa escravidão continua? As pessoas costumam dar de barato que todo trabalho é feito com um objetivo bastante justificado. Elas veem alguém fazendo um serviço desagradável e pensam que resolvem as coisas dizendo que aquele serviço é necessário. Mineração de carvão, por exemplo, é um trabalho duro, mas é necessário — precisamos de carvão. Trabalhar nos esgotos é desagradável, mas alguém precisa trabalhar nos esgotos. E o mesmo se dá com o trabalho do plongeur. Algumas pessoas precisam se alimentar em restaurantes e, portanto, outras pessoas devem lavar pratos oitenta horas por semana. É consequência da civilização e, portanto, inquestionável. Vale a pena examinar essa questão.
O trabalho do plongeur é realmente necessário para a civilização? Temos uma vaga sensação de que deve ser um trabalho “honesto”, porque é duro e desagradável, e fizemos do trabalho braçal uma espécie de fetiche. Vemos um homem derrubando uma árvore e temos certeza de que ele está satisfazendo uma necessidade social, só porque usa seus músculos; não nos ocorre que talvez esteja cortando uma bela árvore a fim de abrir espaço para uma estátua horrenda. Creio que o mesmo ocorre com o plongeur. Ele ganha o pão com o suor de seu rosto, mas não se deve concluir daí que esteja realizando algo útil; ele talvez esteja apenas fornecendo um luxo que, muitas vezes, não é um luxo. Como exemplo do que quero dizer com luxos que não são luxos, tomemos um caso extremo, como dificilmente se vê na Europa. Tomemos um puxador de riquixá indiano ou um pônei que puxa gharri, o carro de aluguel na Índia. Em qualquer cidade do Extremo Oriente há centenas de puxadores de riquixá, negros infelizes de cinquenta quilos vestidos com tangas. Alguns são doentes; alguns têm cinquenta anos de idade. Por quilômetros sem fim, trotam sob sol ou chuva, com a cabeça baixa, puxando pelos varais, o suor pingando de seus bigodes grisalhos. Quando andam demasiado devagar, o passageiro os chama de bahinchut.* Ganham trinta ou quarenta rupias por mês e destroem seus pulmões em alguns anos. Os pôneis de carros de aluguel são bestas descarnadas e violentas que foram vendidas barato por terem poucos anos de trabalho pela frente. Seu dono considera o chicote um substituto da comida. O trabalho deles se expressa numa espécie de equação — chicote mais comida igual a energia; em geral, é cerca de 60% de açoite e 40% de comida. Às vezes, têm uma imensa ferida ao redor do pescoço, de tal modo que puxam o carro o dia inteiro em carne viva. Porém, ainda assim é possível fazê-los trabalhar: é só uma questão de açoitá-los tanto que a dor de trás supera a da frente. Após alguns anos, até o chicote perde a eficácia e o pônei vai para o matadouro de cavalos velhos. São dois exemplos de trabalho desnecessário, pois não há uma verdadeira necessidade de riquixás nem de carros de aluguel; eles só existem porque os orientais consideram vulgar andar a pé. São luxos e, como qualquer um que tenha andado neles sabe, luxos muito pobres. Eles possibilitam uma pequena quantidade de conveniência, que de forma alguma justifica o sofrimento de homens e animais.
O mesmo acontece com o plongeur. Ele é um rei, se comparado com o puxador de riquixá ou com um pônei de gharri, mas seu caso é análogo. Ele é o escravo de um hotel ou restaurante, e sua escravidão é mais ou menos inútil. Pois, afinal, onde está a real necessidade da existência de grandes hotéis e restaurantes chiques? Supõe-se que eles devem proporcionar luxo, mas, na realidade, oferecem apenas uma imitação barata, zurrapa disso. Quase todo mundo odeia hotéis. Alguns restaurantes são melhores do que outros, mas é impossível conseguir em um restaurante uma refeição tão boa como a que se pode ter em casa pelo mesmo preço. Sem dúvida, hotéis e restaurantes devem existir, mas não há necessidade de que escravizem centenas de pessoas. O que gera o trabalho neles não são as coisas essenciais, mas as imposturas que supostamente representam o luxo. O requinte, como chamam, significa, na verdade, apenas que os funcionários trabalham mais e os clientes pagam mais; ninguém se beneficia, exceto o proprietário, que logo comprará uma casa de campo em Deauville. Essencialmente, um hotel “requintado” é um lugar onde cem pessoas labutam como o diabo para que duzentas possam pagar os olhos da cara por coisas de que realmente não necessitam. Se o absurdo fosse eliminado dos hotéis e restaurantes, e o trabalho fosse feito com uma eficiência simples, os plongeurs talvez trabalhassem seis ou oito horas por dia, em vez de dez ou quinze.
Vamos dar de barato que o trabalho do plongeur é mais ou menos inútil. Então vem a pergunta: por que alguém quer que ele continue a trabalhar? Estou tentando ir além da causa econômica imediata e examinar que prazer alguém pode sentir ao imaginar homens lavando pratos pelo resto da vida. Pois não há dúvida de que algumas pessoas — confortavelmente situadas na vida — encontram prazer nesses pensamentos. Marcos Cato dizia que um escravo deve trabalhar quando não está dormindo. Não importa se seu trabalho é necessário ou não, ele deve trabalhar porque o trabalho é em si mesmo bom — para escravos, pelo menos. Esse sentimento ainda sobrevive e criou montanhas de trabalho enfadonho e inútil.
Creio que esse instinto de perpetuar o trabalho inútil é, no fundo, simples medo da plebe. Essa gentalha (costumam pensar) é constituída por animais tão vis que se tornariam perigosos se tivessem lazer; é mais seguro mantê-los bastante ocupados para evitar que pensem. Se perguntarem a um homem rico que seja intelectualmente honesto sobre a melhoria das condições de trabalho, ele dirá algo assim:
“Sabemos que a pobreza é desagradável; na verdade, uma vez que é tão remota, gostamos um pouco de nos angustiar com a ideia de sua desagradabilidade. Mas não esperem que façamos alguma coisa a respeito dela. Temos pena de vocês, classes baixas, tanto quanto temos pena de um gato com sarna, mas lutaremos como demônios contra qualquer melhoria de sua condição. Achamos que vocês estão muito mais seguros assim como vivem. O atual estado das coisas nos convém e não vamos assumir o risco de libertá-los, nem mesmo de uma hora extra por dia. Então, queridos irmãos, uma vez que vocês devem evidentemente suar para pagar nossas viagens à Itália, suem e que se danem.”
Essa é, particularmente, a atitude de pessoas inteligentes e cultas; pode-se ler a substância disso em centenas de ensaios. Muito poucas pessoas cultas têm menos de (digamos) quatrocentas libras esterlinas por ano e, naturalmente, ficam ao lado dos ricos porque imaginam que qualquer liberdade concedida aos pobres é uma ameaça a sua própria liberdade. Prevendo alguma sinistra utopia marxista como alternativa, o homem instruído prefere manter as coisas como estão. É possível que ele não goste muito de seus companheiros ricos, mas supõe que até o mais vulgar deles é menos inimigo de seus prazeres, mais seu tipo de gente, do que os pobres, e que é melhor defendê-los. É esse medo de uma plebe supostamente perigosa que faz com que quase todas as pessoas inteligentes tenham opiniões conservadoras.
O temor da plebe é um medo supersticioso. Baseia-se na ideia de que há alguma diferença fundamental e misteriosa entre ricos e pobres, como se fossem duas raças diversas, como negros e brancos. Mas, na realidade, não existe diferença. A massa dos ricos e a dos pobres diferenciam-se por suas rendas e nada mais, e o milionário típico é apenas o lavador de pratos típico com roupa nova. Troquem-se os lugares e adivinhem quem é o juiz e quem é o ladrão. Quem quer que tenha se misturado em termos iguais com os pobres sabe disso muito bem. Mas o problema é que as pessoas inteligentes e cultas, exatamente aquelas que deveriam ter opiniões liberais, jamais se misturam com os pobres. Pois o que a maioria das pessoas instruídas sabe sobre pobreza? Em meu exemplar dos poemas de Villon traduzidos para o inglês, o editor julgou necessário explicar o verso “Ne pain ne voyent qu’aux fenestres” em uma nota de rodapé, tão remota é a fome da experiência do homem culto. Dessa ignorância resulta naturalmente um medo supersticioso da plebe. O homem instruído imagina uma horda de sub-homens, desejosos apenas de um dia de liberdade para saquear sua casa, queimar seus livros e pô-lo a trabalhar cuidando de uma máquina ou varrendo um banheiro. “Antes qualquer coisa”, ele pensa, “qualquer injustiça, a libertar a plebe.” Não vê que, uma vez que não existe diferença entre a massa de ricos e a de pobres, não se trata de libertar a plebe. A plebe, na verdade, está livre agora e — na forma de homens ricos — está usando seu poder para montar enormes moinhos de tédio, tais como os hotéis “elegantes”.
Para resumir. O plongeur é um escravo, e um escravo mal utilizado, que executa um trabalho estúpido e, em larga medida, desnecessário. Em última análise, ele é mantido no trabalho devido a um vago sentimento de que seria perigoso se tivesse horas vagas. E as pessoas instruídas, que deveriam estar do lado dele, concordam com o processo, porque não sabem nada sobre ele e, em consequência, têm medo dele. Falo do plongeur porque é o caso dele que estou examinando, mas isso se aplicaria também a incontáveis tipos de trabalhadores. Estas são apenas minhas próprias ideias sobre os fatos básicos da vida de um plongeur, apresentadas sem referências imediatas a questões econômicas e, sem dúvida, são obviedades em sua maioria. Apresento-as como uma amostra dos pensamentos que passam pela cabeça de quem trabalha em um hotel.
ORWELL, George. Na pior em Paris e Londres. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário