Eliane Brum não é apenas o olho, ela sente e ecoa a pulsação da rua. Em O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real, lançado em 2017, a jornalista gaúcha coloca em folhas o que há de mais bonito nos gêneros informativos, o jornalismo literário. Ela une a inquietude e a técnica da escrita para criar revelar a vida que poucos veem ou querem ver (neste caso, ler).
Nesta coletânea de reportagens Brum não se esconde, mas se insere na própria história. O olho da rua é uma plataforma para vozes e lugares marginalizados. É a observação jornalística combinada com uma escrita pessoal e reflexiva, oferecendo um olhar necessário sobre a realidade brasileira, sobretudo da região Norte do país.
A geografia que ninguém quer ver
Seja nas entranhas de Roraima ou no oeste mais noroeste do Brasil, Brum não se contenta em apenas escrever, ela vai viver. Sua obra aborda questões sociais e a vastidão geográfica e desconhecida do nosso país.
Em um trecho sobre Roraima, ela o descreve como um lugar isolado, "ligado ao resto do país apenas por uma transfusão de recursos". A autora fala da crise de identidade de Boa Vista, capital de Roraima, a história de exploração da região, com menções a garimpeiros e à luta pela proteção dos povos indígenas.
Brum se define como "aquela que não nasceu na terra, mas a ama". A paixão de Brum por essas terras não é uma reparação sulista de sentimento, mas a de quem a viveu intensamente cada convívio com quem é de lá.
Uma breve história: a floresta das parteiras
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Jovelina Costa dos Santos |
Em Ponta Grossa do Piriri, na Amazônia paraense, ressoam os gritos de bebês e de suas parteiras. Mulheres que, com suas mãos, acolhem os primeiros instantes de vida dos filhos de outras.
A floresta das parteiras é uma terra de cantorias. "Quem disse que não somos nada, que não temos nada, já se enganou. Repara nós organizadas e bem preparadas com as parteiras estou..." cantarola a voz espichada do Norte. Tereza Bordalo, 51 anos, cinco filhos e cinco netos, parteira desde os dezesseis. Misteriosa como todas, ela levanta as mãos ao céu e traça uma cruz invisível na vagina da mulher, o dente de jacaré balançando perigosamente entre seios de madona profana. (p. 30)
Jovelina Costa dos Santos é outra das parteiras desta comunidade amazônica. Uma mulher descrita como alguém que "chama os 'filhos de umbigo' para exibir às visitas".
A cabocla Jovelina só tem dois assombros na vida. Quando fala neles, até se dá ao luxo de suspirar. Um é o primeiro marido, por quem até hoje, apesar de falecido, ainda cultiva uma paixão que lhe enfogueira por dentro. "Era louca pelo falecido. Mas larguei dele. Tinha eu e mais três. Uh!" O outro são os médicos, a quem Jovelina atribui uma ignorância fora do comum. "O que esta mulherada sofre na maternidade é um golpe, minha irmã", apavora-se. Aqui, se o menino se acomodou de mau jeito, a gente vai e dobra. Boto a mão e vou puxando, puxando, puxando até ele se ajeitar, botar a cabeça no lugar. Aí não precisa cortar. Médico, coitado, não sabe dobrar menino. (p. 27)
Mulheres que desconfiam de uma ciência que não vem da força da terra e das mãos de quem nela sempre esteve tão conectada. Essa é a floresta das parteiras.
Uma reportagem que me fez lembrar de minha bisa, a Dona Alvina, a Dinha. As mãos de curandeira e parteira, mãos de "Bruxa", que trouxeram tantas vidas ao mundo. Sinto em Jovelina e em outras mulheres apresentadas gentilmente por Eliane Brum, mesmo em um território tão distante, a mesma força e o mesmo legado de Dona Alvina da capacidade de dar à luz os filhos dos outros e, com isso, permitir que a vida se cubra de futuro.
Obrigada, livro, por me fazer relembrar a força feminina.
BRUM, Eliane. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. Editora Globo, 2017.
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