Publicado em 1830, Sarrasine, do escritor francês Honoré de Balzac, é um conto que combina romance e crítica social, abordando questões de gênero, idealização do amor e a fragilidade das paixões (e relações) humanas.
Eu estava mergulhado em um daqueles devaneios profundos que dominam todo mundo, até um homem frívolo, no coração das festas mais tumultuosas. (p.7)
A narrativa começa em um luxuoso salão parisiense onde o narrador se depara com um senhor misterioso e cheirando a cemitério, como um dos personagens o descreve. Após indagações, o que fica se sabendo é a história de um escultor francês do século XVIII, chamado Sarrasine.
Famoso por sua genialidade e temperamento romântico, ele se apaixona perdidamente por Zambinella, uma cantora de ópera de beleza e voz extraordinárias.
Quando a Zambinella cantou, foi um delírio. O artista teve um calafrio; depois, sentiu uma fogueira crepitar subitamente nas profundezas de seu íntimo, daquilo que chamamos coração, por falta de palavra melhor! Ele não aplaudiu, não disse nada, experimentou um movimento de loucura, espécie de frenesi, que só agita na idade em que o desejo tem não sei que de terrível e infernal. Sarrasine queria se jogar sobre o teatro e se apoderar daquela mulher. (p. 49)
O artista dedica sua vida e obra à musa Zambinella, mas se afunda em frustrações quando descobre um segredo: Zambinella é, na verdade, um castrato, homem castrado na juventude para manter a voz soprano.
-Ah! Não me mateis, exclamou Zambinella, rendendo às lágrimas. Não consenti em vos enganar senão para agradar meus camarada, que queriam rir. - Rir! respondeu o escultor com uma voz que teve uma explosão infernal. Rir, rir! Ousastes brincar com a paixão de um homem, pois? (p. 77)
A revelação destrói Sarrasine, levando-o a um confronto trágico que culmina em decadência, sobretudo artística.
O procedimento de castração era realizado antes da puberdade, removendo os testículos. Comum nos séculos XVII e XVIII, especialmente na Itália, o objetivo era combinar o timbre infantil com a força pulmonar de um adulto, resultando em vozes únicas valorizadas na ópera e na música sacra, como a voz de Zambinella.
Embora alguns castratos alcançassem fama, a prática causava sofrimento físico e psicológico. Zambinella também sofria, vivia entre agonias solitárias e incertezas comuns aqueles que se sentem enclausurados em uma condição.
Sem nenhuma paixão vulgar, puramente. Abomino os homens ainda mais talvez do que odeio as mulheres. Preciso me refugiar na amizade. O mundo é deserto pra mim. Sou uma criatura maldita, condenada a compreender a felicidade, a senti-la, a desejá-la, e, como tantas outras, forçada a vê-la toda hora fugir de mim. (p. 67)
O procedimento de castração foi condenado no final do século XVIII e oficialmente proibido pela Igreja Católica em 1870, encerrando uma era controversa na história da música.
BALZAC, Honoré de. Sarrasine. Editora Literatura Clássica. Dois Irmãos, RS. 2022.
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