Um dia o escritor Italo Calvino teve um sonho, nesse sonho, cidades estranhas se erguiam, com peculiaridades nunca vistas antes. Não foi assim que nasceu o livro As cidades invisíveis (1972) mas eu gosto de imaginar que foi...
Pensar em As cidades invisíveis é pensar num sonho surrealista. Por que não dizer que Italo Calvino tende a ser surrealista na escrita deste livro? Criar cidades não é um ato megalomaníaco (não nesta obra!), mas uma possibilidade de invenção onde o território livre da mente se faz necessário.
Ândria foi construída com tal arte que cada uma de suas ruas segue a órbita de um planeta e os edifícios e os lugares públicos repetem a ordem das constelações e a localização dos astros mais luminosos: Antares, Alpheratz, Capela, as Cefeidas. O calendário da cidade é regulado de modo que trabalhos e ofícios e cerimônias se disponham num mapa que corresponde ao firmamento daquela data: assim, os dias na terra e as noites no céu se espelham. (p.136)
A trama se desenrola através dos diálogos entre Marco Polo, um viajante veneziano, e o imperador mongol Kublai Khan. Marco Polo descreve dezenas de cidades, cada uma com suas peculiaridades.
Kublai Khan parece sempre estar ouvindo asneiras, assumindo então uma postura cética diante de tamanho surrealismo urbano, questionando a veracidade de cada detalhe e a possibilidade da felicidade, da loucura, das repetições, das linhas e curvas de cada lugar.
Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categoria [felizes ou infelizes], mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados. (p. 36)
É como nós, ouvindo relatos, desacreditando de um lugar que sequer estivemos ou jamais estaremos, se tratando do passado e o que foi vivido em um certo tempo-espaço.
A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar. (p. 115)
A alma andarilha de Marco Polo cria lugares inimagináveis, cidades que nada tem de nós ou de agora. São as cidades invisíveis.
[…] porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos.
– Você viaja para reviver o seu passado? – era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: – Você viaja para reencontrar o seu futuro?
E a resposta de Marco:
– Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá. (p. 29)
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