O pequeno conto Apelo de Dalton Trevisan aborda perda e saudade, explorando a desordem emocional e doméstica causada pela ausência de uma mulher. Através da voz de um marido aflito, Trevisan revela a dependência emocional e prática em relação à figura feminina, um reflexo dos estereótipos de gênero presentes na sociedade.
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
O desconstrução do lar na ausência feminina
A narrativa se desenrola com um apelo angustiado do marido, que lamenta a ausência da esposa e a consequente desorganização do lar. O leite coalhado, as meias furadas e as violetas murchas na janela simbolizam a deterioração da vida cotidiana sem a presença feminina.
A saudade, um sentimento atemporal, permeia todo o conto, mas também revela as particularidades da sociedade patriarcal, em que o papel da mulher é fortemente ligado ao espaço doméstico.
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Juliette Félix | Unsplash |
A caracterização da esposa, a Senhora, é construída através das memórias e lamentações do marido. Sua imagem é moldada pelos afazeres domésticos, reforçando os estereótipos de gênero. No entanto, a ausência da Senhora também a transforma em um motivo dinâmico, pois sua falta desencadeia uma mudança drástica na vida do protagonista.
Trevisan utiliza uma estrutura narrativa que revela gradualmente a profundidade da solidão do protagonista. No início, a ausência da esposa parece suportável, mas com o passar do tempo, a falta se torna insuportável. Essa progressão emocional é construída através de descrições detalhadas do cotidiano, que funcionam como motivos livres, revelando a dependência do marido.
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